01 março 2006

"EM BUSCA DAS ESTATUAS PERDIDAS"
(AS ESTÁTUAS CASTREJAS DO LESENHO
– BOTICAS)


De entre os enigmas mais interessantes da história arqueológica do Alto Tâmega, sobressai o da explicação do aparecimento das chamadas estátuas castrejas do Lesenho, lugar do concelho de Boticas, distrito de Vila Real.
Usa-se aqui a expressão "estátuas castrejas" por esta ser uma designação neutra e consensual, mais do que outras como "guerreiros lusitanos", "guerreiros celtas" ou "estátuas galaicas", além de outras, usadas por vários dos autores que sobre elas escreveram. Embora poucos arqueólogos as tenham estudado, as suas descrições e as suas imagens são conhecidas dos que estudam a história do Alto Tâmega. Existe uma ideia geral daquilo que são e do que eventualmente possam significar.
Porém, sobre elas paira uma certa bruma de desconhecimento que nem o melhor trabalho académico sobre o assunto (1) logra dissipar de todo. Também não a dissipará a recolha de dados sobre a matéria de que se dará conta de seguida, cujo objectivo é facultar pistas a alguém mais avisado que as venha a ler e logre empreender tal tarefa.
As estátuas encontradas no Lesenho são quatro. Este conjunto é significativo, sobretudo sabendo que em todo o noroeste peninsular, no âmbito das investigações sobre a civilização castreja, apenas se descobriram e são conhecidas 32 destas estátuas. Além disso, como regra, surgiram isoladas. Em nenhum outro caso apareceram 4 no mesmo local 4 estátuas e somente em alguns casos apareceram duas delas (2).
As quatro do Lesenho pertencem ao espólio do Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, actualmente instalado no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. Uma delas, divide ao meio a porta de entrada daquele museu. Outra, ilustra a sua colecção permanente de joalharia pré-romana. As duas últimas - as acéfalas -, estão encaixotadas na arrecadação do museu e apenas podem ser vistas após requerimento nesse sentido dirigido ao seu director, não podendo ser fotografadas.

DO LESENHO AOS JERÓNIMOS
Ficou acima dito que todas estas estátuas terão sido encontradas no Castro do Lesenho, em Boticas. Embora assim pareça ter sido, não há noticia que reporte com rigor com rigor o local ou a data da sua descoberta moderna. De duas delas sabe-se que no século XVIII estavam já na vizinha aldeia de Covas do Barroso, havia talvez um século. Aí foram vistas pelo Magistrado Judicial da comarca, Sr. Dr. Miguel Pereira de Barros, que se deslocara de Montalegre para visitar a terra (3). Nessa época, em que felizmente para eles e não só, os Magistrados podiam dedicar-se à pacata exploração turística das zonas mais remotas das respectivas comarcas, o Dr. Barros interessou-se pelas duas estátuas, achando que no local onde as viu, a praça fronteira à igreja paroquial, não lhes era dado o devido valor. Achou ainda que a comunidade culta da capital as apreciaria melhor, pelo que, usando prerrogativas de que hoje não disporia, mandou que os dois "guerreiros" fossem expedidos para Lisboa. Na altura, as duas estátuas foram colocadas num embrionário museu, que viria a passar pelos jardins do Palácio da Ajuda até chegar aos jardins de Belém. Aqui, foram incorporadas no Museu Etnográfico Português, entretanto criado por José Leite de Vasconcelos (4). Neste museu, foram expostas ao público e observadas com curiosidades pelos estudiosos. Logo em Janeiro de 1903, o francês PIERRE PARIS fez publicar nas páginas do "Archeologo Portuguez" (5) o primeiro estudo que se conhece sobre estas duas estátuas (6) . Chamava-lhes "statues de Ajuda" e "guerriers lusitaniens", referindo que haviam sido descobertas em Montalegre, em 1789. Aludindo também à estátua entretanto achada em Capeludos de Aguiar, também pertencente ao espólio do mesmo museu, dizia entender tratar-se de estátuas funerárias. Tendo em conta as formas algo grosseiras de representação, afirma ainda que se trata de manifestações pré-romanas. Este texto incluía duas gravuras representativas das estátuas. Mais tarde, em 1908, as páginas do "Archeologo Portuguez" voltariam a relatar interpretações destas estátuas, da autoria de FÉLIX ALVES PEREIRA (7).
Diferente sorte tiveram as outras duas estátuas actualmente conhecidas. Foi também nas páginas da mesma revista que a comunidade arqueológica as ficou a conhecer (8 ). Naquela revista, além de se descreverem, incluíam-se gravuras das duas novas estátuas. Referia-se que se ­encontravam em Viana do Castelo, na casa do respectivo achador, Luís de Figueiredo da Guerra. Delas se dizia, ainda, serem pré-romanas, correspondendo ao segundo período da Idade do Ferro, inserindo-se na chamada "arquitectura citaniense do noroeste da península" (9). Luís de Figueiredo da Guerra, que foi juiz na comarca de Boticas no início do século XX, foi efectivamente o "achador" das duas estátuas acéfalas hoje encaixotadas nas arrecadações dos Jerónimos. Do achado dá conta, em trabalho que fez publicar em 1911 (10) hoje disponível em reimpressão. Nele, este magistrado/arqueólogo refere visitou o castro de Lesenho em Julho de 1905, altura em que lhe foi dito que, além das estátuas que já conhecia por haverem sido descobertas em Covas do Barroso, havia uma terceira estátua no povoado de Campos. Dirigindo-se a esta povoação, a mais próxima do Castro de Lesenho, o Dr. Guerra viria a observar esta terceira estátua e ainda a descobrir uma quarta, "servindo de degrau a um casebre!" (11).
Não se conhecem outras referências bibliográficas a estas duas estátuas decapitadas (além da obra de Armando Coelho já referida), não havendo também memória escrita publicada da data em que terão sido removidas da casa do Dr. Figueiredo Guerra onde estavam desde 1909, para o Mosteiro dos Jerónimos, onde se encontram hoje. Apenas se sabe que até data indeterminada, entre 1917 e 1920, as estátuas estavam ainda em Viana (12). A circunstância de as duas estátuas degoladas terem estado transitoriamente em Viana do Castelo tem criado na historiografia regional do Alto Tâmega uma confusão quanto à sua actual localização, sempre assumida com sendo Viana do Castelo. Este dado erróneo, que atinge os arqueólogos regionais chegando mesmo a determinar outros de maior nomeada (13) foi superado pelo Professor Armando Coelho (14), que observou e descreveu todas as estátuas do género localizadas em Portugal. Quanto a estudiosos regionalistas, a veracidade de tal dado apenas é questionada pelo Dr. Manuel Carvalho Martins (15) que estranha que ainda actualmente no Museu de Viana do Castelo seja referenciada uma estátua de guerreiro castrejo, mas somente uma. Na verdade, esta estátua não é nenhuma das achadas no Lesenho, tendo sido descoberta em data muito anterior. É referenciada, quer por Luís da Guerra (16), quer pela equipa do Professor Santos Júnior (17) que, por sua vez, refere ter sido a mesma observada por Hubner. A sua zona de proveniência é a Serra de Arga, no Alto Minho, e encontra-se ainda hoje no museu de Viana (18).

O CASTRO DO LESENHO
No outeiro do Lesenho, que assumimos como local de origem das quatro estátuas, há vestígios de um castro, coroando um morro cónico e isolado, que alcança os 1075 metros de altitude. O local é rochoso e escarpado. As encostas estão semeadas de blocos graníticos de grandes proporções e também de pequenas pedras retiradas das muralhas destruídas. Já foi muito florestado, mas os incêndios deixaram-no descampado. Depois deles apenas cresceram no local vegetação rasteira e pequenos arbustos. O Castro de Lesenho está classificado como imóvel de interesse público (19). Não obstante, apenas há noticia de trabalhos de arqueologia nas suas ruínas em duas ocasiões (20). Numa delas, em 1960, foi refeita "a porta da muralha fundeira aberta a poente, e os pequenos troços de muralha a um outro lado dessa porta" (21). Na outra, em 1981, apenas foram feitos trabalhos de reconhecimento e levantamento. Terá havido ainda, em 1782, por ordem de Miguel Pereira de Barros, escavações no Lesenho, apenas referidas por Luís Guerra (22), "não constando o resultado". Estes trabalhos pouco terão diferido das inúmeras escavações levadas a cabo por caçadores imaginários fabulosos tesouros, ao longo dos séculos. Ao que se julga, este castro que, para Luís da Guerra "deve ser reputado o mais importante castro lusitano de Portugal" (23), deverá ter tido, em seu tempo, três cinturas de muralhas, com um perímetro de cerca de 200 metros. Delas, apenas a interior está bem perceptível, correspondendo as restantes, meramente, a "montes de pedra, que em alguns sítios pouco se patenteiam" (24). Nas sumárias escavações que a equipa do Professor Santos Júnior realizou (25) não foram descobertos vestígios de quaisquer casas - as quais seguramente existiram outrora. Apenas foram identificadas as muralhas e, nelas, algumas portas.
Actualmente, em virtude da fantástica configuração do morro, do qual se avistam todas as cadeias montanhosas da região (serra do Gerês, serra do Larouco, serra do Alvão, serra da Padrela e serra do Marão) está aí instalado um posto de observação florestal, para detecção de incêndios. A ele dá acesso um estradão florestal, que liga à estrada Campos/Boticas. O castro está localizado a leste da povoação de Campos, pertencente à freguesia de São Salvador de Viveiro e ao município de Boticas (26). A zona envolvente revelou já vestígios de outras manifestações castrejas. Entre outros, em locais próximos, conhecem-se os castros de Ervas Ruivas, em Lousas, do Paio, em Covas, de Vilar, de Codeçoso e de Secerigo. Há também referências a gravuras rupestres pré-castrejas (27) e ainda ao achado de mamoas na zona do sopé do outeiro de Lesenho (28). É também provável que este castro, de origem claramente pré-romana, tenha sido romanizado, uma vez que há notícia de aí ter sido encontrada cerâmica tipicamente romana (29).

O QUE RESTA DAS ESTÁTUAS.
São pois quatro as estátuas que se vêm referindo. Duas delas conservam ainda a parte correspondente à cabeça, o que não acontece com as outras duas. Em comum têm o material – pedra granítica ­em que foram esculpidas e o estilo em que foram trabalhadas. Esta identidade de estilo permite levantar a possibilidade de terem sido todas realizadas pelo mesmo autor ou autores. O que, aliás, é aplicável a outras estátuas com idênticas formas de representação surgidas no noroeste peninsular.
Armando Coelho sugere até que talvez tivessem sido construídas por "grupos de artistas ambulantes" que, como noutros períodos históricos "percorriam a região a construir obras de arte" (30). Justifica tal afirmação com o grande nível de perfeição das estátuas, que parecem "obras de artistas, em confronto com o carácter rude e grosseiro que muitas outras espécies escultóricas manifestam"(31 ). Já anteriormente Leite de Vasconcelos defendia, emblemática e significativamente, que "todos os guerreiros têm entre si ar de família, já na significação, já na arte, embora uns mais toscos que outros" (32). Todas as estátuas são monolitos de uma só peça, medindo, de altura, respectivamente, 2.07 m, 1.73 m, 1.57 m e 1.26 m, sendo as duas acéfalas as mais pequenas. A última, além de destituída da parte do corpo superior ao pescoço, está também danificada no seu flanco direito. Todas se apresentam estáticas, paradas e erectas. Quanto ao demais, têm características comuns, configurando-se como representações figurativas de guerreiros. Assim, todas elas empunham escudos no braço esquerdo e punhais no braço direito. Os escudos são redondos e planos, idênticos à “caetra" ibérica, de origem pré-romana. Por sua vez, os punhais curtos e triangulares são também diferentes dos gládios romanos, mais se identificando com os punhais característicos de épocas anteriores à Idade do Ferro e designadamente com os usados, na Idade do Bronze (33).
Por outro lado, todos os guerreiros são representados com saiote, de formatos idênticos embora ostentando motivos decorativos diferentes entre eles. A esta peça de vestuário chama Leite de Vasconcelos "túnica cingida ao corpo por cinturão" (34). Quanto às duas estátuas que conservam as suas cabeças, têm rostos semelhantes, onde sobressaem os olhos, salientes, e os narizes achatados. Ambas são barbadas e têm cabelos curtos. Por último, todas as estátuas têm em comum as peças de ourivesaria que ostentam. As que têm cabeça exibem "torques" no pescoço. Todas elas têm "viriae" em ambos os braços, as quais, na sua maioria, têm três argolas, sendo apenas de duas num dos braços de uma delas e de uma nos dois braços de outra. Quer as armas que empunham, quer os ornamentos que ostentam, permitem aproximar as estátuas da sua origem histórica. Quanto às armas, são claramente pré-romanas, denotando origem céltica, que alguns autores chamam impropriamente lusitana (35). Por sua vez, os ornamentos de ourivesaria, não só indicam a época de origem das estátuas, como revelam qual seu papel e posicionamento social e político. Com efeito, os "torques" são uma manifestação característica da cultura céltica. "Eram objectos de adorno, de grande valor material, demonstrando riqueza e, ao mesmo tempo simbólicos. Em linguagem actual chamar-lhes-íamos colares ou gargantilhas", caracterizando "uma das principais formas ou artes de ourivesaria - os torcidos" (36). São "jóias estruturalmente simples, constando de um aro de perfil circular ou afim, e normalmente com remates típicos nos extremos, adequado ao pescoço" (37). Sendo um elemento decorativo exclusivamente masculino, os torques "constituem sem dúvida o tipo de ornato pessoal mais significativo de ourivesaria castreja do noroeste peninsular" (38), sendo também, por outro lado "uma das jóias mais características da época de «La, Téne», identificada com os celtas pelos dados arqueológicos e pelos autores gregos e latinos" (39). Manuel Martins afirma ainda a este propósito que estes torques se reportam "ao período céltico ou gaulês", por serem semelhantes aos usados por aquele povo. Avança ainda a hipótese de existir na zona a que hoje corresponde Chaves uma espécie de oficina de produção de torques, uma vez que foram referenciados na região diversos exemplares, todos do mesmo tipo e com as mesmas características (40), provenientes, portanto, provavelmente, do mesmo artista ou grupo de artistas. Feitos "de bronze, prata ou ouro, eles definiam (…) o «status» social de quem os usava” (41). Segundo Armando Coelho “tudo indica que os torques se tenham convertido especificamente em signos de dignidade da função guerreira" (42).

QUEM TERÁ FEITO AS ESTÁTUAS E QUANDO.
O que se deixou dito e citado aponta, sem dúvidas de maior para a conclusão de que as estátuas do Lesenho representam guerreiros e terão tido origem período castrejo, configurando-se assim como uma manifestação da cultura céltica do noroeste peninsular. É todavia difuso aquilo a que habitualmente se chama a cultura castreja, ou céltica. A rígida e clássica periodização das "idades", em História, é cada vez menos inflexível e de fronteiras rígidas, oscilando em função de novos achados ou de reinterpretações daquilo que se conhece já. Neste pressuposto, admite-se que a Idade do Bronze cobriu todo o segundo milénio antes de Cristo, abrangendo, de 2000 - ou 1800 -, (43) a 1000 A.C. os períodos do Bronze Antigo e do Bronze Médio. Mas incluiu também os finais do 2º milénio, até cerca de 700 A. C., período correspondente ao Bronze Final. A cultura castreja terá assim como balizas, a montante, o Bronze Final, a jusante, a romanização (44). Na Península Ibérica, a evolução civilizacional em que se traduziu a cultura castreja foi determinantemente marcada pelas invasões célticas, que terão introduzido transformações de grande relevo na cultura autóctone. É porém sabido que já desde o advento da Idade do Bronze que se intensificou a fixação de povoações em locais de fácil defesa. As populações escolhiam elevações e outros sítios em que os meios naturais de defesa facilitassem a implantação de outros meios de defesa. E assim terão surgido os primeiros castros, povoações fortificadas em virtude das necessidades que os tempos impunham aos seus moradores. Os castros podiam ser simplesmente muralhas, em uma ou várias cinturas, ou podiam ter ainda fossos de pedras fincadas (45). Era esta a tendência de fixação dos povos no inicio do primeiro milénio A.C., na transição para a Idade do Ferro. Deste modo, conclui Santos Júnior, "grande parte dos castros do noroeste peninsular, com os de Trás-os-Montes inclusos, devem ser muito anteriores à penetração dos celtas na Península" (46). Segundo Mário Cardoso, alguns deles poderão ser mesmo anteriores à Idade do Bronze, remontando aos "tempos neoliticos" (47). A chamada civilização castreja teve assim uma grande longevidade, já que a generalidade dos castros subsistiram, e até ultrapassaram, a romanização. Embora alguns dos castros romanizados se tenham convertido em "cividades" romanas, outros, enquanto povoações fortificadas de montanheses, embora romanizadas, subsistiram ainda alguns séculos, mantendo a sua identidade.
Os celtas terão chegado à Península Ibérica cerca do século V A.C. (48), ou segundo Leite de Vasconcelos, pelos séculos VI-V A.C.,"chegando a sua influência até época romana" (49). Há autores que situam as invasões célticas no VIII século A.C., mas a tendência dominante, no seguimento dos autores clássicos (50) situa-as no século VI. A.C.. Com eles, os celtas trouxeram "um grau de cultura superior (...) e uma arte nova de trabalhar em ferro as armas e utensilios" (51).
Na península, encontraram já o produto da fusão de culturas autóctones com outras culturas. Encontraram pontos de influência dos fenícios, dos lígures e dos gregos, que aqui estavam estabelecidos em colónias costeiras. Provavelmente, encontraram também os túrdulos, povo de origem pré-indo-europeia.
Na verdade, desde os finais do III milénio A.C. a Península Ibérica servia de charneira a dois espaços geográficos em rápida evolução, colhendo contributos de ambos. De um lado, as culturas emergentes da bacia mediterrânica e do próximo oriente; do outro, os povos das costas europeias do Atlântico Norte (52). Este ambiente determinou a implantação, naquilo que é hoje o território nacional, de duas diferentes culturas. A sul, uma cultura mediterranizada, marcada pela influência dos povos comerciantes do mar interior. A norte, uma cultura inspirada pelos povos do norte, dominada pelo culto da guerra. Não há estudos determinantemente conclusivos sobre a chegada dos povos célticos e sobre a sua influência na evolução peninsular e, bem assim, sobre a assimilação socializadora que os invasores terão feito das civilizações autóctones. Com Manuel Martins, ocorre dizer que "não é fácil colocar marcas à expansão étnica ou cultural dos celtas" (53). Tanto mais que este conjunto de povos transmitiu a sua civilização, de geração em geração, de forma oral, sem que esta herança cultural fosse registada (54).
No que respeita ao noroeste peninsular e concretamente à área do Lesenho, em cujo contexto há que situar o surgimento das estátuas guerreiras, pode dizer-se, com Armando Coelho, que o seu ordenamento étnico "foi resultando da sedimentação de contributos diversificados trazidos por migrações e outros fenómenos de difusão em que se adivinha uma forte componente céltica de ordem cultural sobretudo denunciada por via linguística e se circunscrevem elementos de uma colonização túrdula, meridional, sobre um substrato indígena a que não faltavam influências de origem indo-europeia, que se manifestam em aspectos típicos da sua organização social" (55).
A divisão geográfica do território, correspondendo zonas de influência do que a povos com culturas regionais diferenciadas, apenas foi fixada ulteriormente na romanização. Citando autores clássicos, Leite de Vasconcelos defende que a “Callecia ou Gallecia, de modo geral corresponde às nossas províncias de Entre Douro e Minho e de Trás-os-Montes e à moderna Galiza", sendo que o "Douro separa da Lusitânia os Galegos" (56). Seria “habitada de célticos a região situada ao norte do Douro" (57).
Não se sabe se, na época romana, haveria ou não elementos comuns a este grupo de povos ditos célticos ou "callecii". Na região transmontana e duriense viviam a leste, os Zoelos ou Zélos (58). Um pouco para oeste, no actual Alto Tâmega, viviam os Turodos (59), que ocupavam a zona actualmente correspondente à cidade de Chaves (60) havendo quem sustente que este era o originário nome dos Aquiflavienses, povo que terá assim mudado de nome após a romanização e a fundação do município das Águas de Flávio (61). A noroeste, nas terras de Barroso e Larouco viviam os Equésios (62) cuja cidade de Caladunum estaria situada algures entre o Gerês e o Larouco. As terras da serra da Padrela estariam povoadas de Luancos e Coelernos. Não havia fronteiras entre os limites entre cada um destes povos, que em rigor nem estariam delimitadas. Até porque a ocupação territorial não era abrangente ou extensiva a todo o território. Não é assim possível saber com exactidão qual o povo que ocupava cada castro. Os autores defendem que, como regra, cada um dos povos estava unido por um laço comum. Designadamente por um núcleo familiar ou por um antepassado comum, que estabelecia entre os vários castros e as diversas famílias que o compunham, laços de sangue, "notório espírito de hierarquização geral, ao gosto das sociedades indo-europeias" (63). Esta é, aliás, uma ideia importante no momento de determinar o significado e função das estátuas de guerreiros castrejos. Tanto mais que, próximo das invasões romanas este sistema sócio-político rudimentar, baseado na consanguinidade, havia já sofrido alterações, dando origem a um outro modelo, fundado na fidelidade a um líder ou chefe militar. Esta circunstância viria, aliás, a facilitar a invasão romana, levada a cabo por um exército mais forte e dotado de grande organização (64), que apenas teve que defrontar, em geral, hordas de bravos montanheses, desorganizadas e isoladas umas das outras.
É que, na sociedade guerreira do norte, durante a Idade do Ferro, tinha aumentado o poder dos guerreiros. Ao contrário do que acontecera até então, a guerra, marcada cada vez mais pelo uso de armas de diferente natureza - superiores, portanto, sobretudo após a introdução do ferro -, passa a ser uma capacidade de apenas alguns. Torna-se por isso numa actividade de natureza económica, tendo em vista assegurar a subsistência própria e da comunidade, por via da conquista e da pilhagem. Estas circunstâncias conferem à função guerreira protagonismo social e político. O número de guerreiros passa a ser menor, constituindo a classe mais rica e dominante (65). Em sinal deste domínio, os guerreiros passaram a usar permanentemente armas, designadamente "espadas em «língua de carpa», lanças de bronze e escudos redondos de couro" (66). Por outro lado, como manifestação da riqueza ostentavam fíbulas de ouro ou bronze e braceletes (ou «viriae»). Usavam ainda torques. Estes ornamentos foram manifestações típicas da ourivesaria da fase final da Idade do Ferro.
Os arqueólogos e historiadores admitem que as estátuas de que se vem falando sejam representações figurativas de guerreiros. Aliás, a similitude da figura do guerreiro céltico do Ferro final a que acima se aludiu com as representações das estátuas é marcante. É pois neste contexto temporal que há que localizar o surgimento das estátuas (67).

O SIGNIFICADO DAS ESTATUAS.
O que já não é tão claro é o motivo pelo qual estas estátuas foram feitas. Não é possível afirmar peremptoriamente qual a sua finalidade, ou porque motivo reproduzem a imagem dos guerreiros do tempo. O granito, material nobre, indicia a intenção de perpetuar no tempo a realidade subjacente. A relativa perfeição das formas, em si mesmas rudes, mas mais acabadas que as referencias da época, denota importância e empenhamento. Por sua vez, a repetição significativa deste fenómeno sociológico e artístico por toda a região do noroeste peninsular expurga-o de quaisquer dúvidas sobre a necessidade de o considerar significativo. Esta multiplicação de fenómenos, por outro lado, obriga a considerar esta realidade de um modo englobante, enquanto manifestação de toda uma forma civilizacional e cultural, afastando interpretações que se reconduzam a parâmetros locais, de cada castro. Félix Alves Pereira, em 1908 (68), buscando o significado destas estátuas, estudou-as comparando-as com representações que considera de tipo idêntico, surgidas em Aveyron, em França (69).Estas estátuas francesas apareceram em grande número numa região delimitada. Tal como as estátuas portuguesas e galegas seriam parecidas entre elas, tendo uma interpretação escultural uniforme. ­Para estas estátuas, os arqueólogos franceses avançam a hipótese de serem imagens de divindade, com eventual carácter de guerreiro. Dada a similitude com as estátuas peninsulares, o citado autor afirma admitir que estas serão manifestação de fenómeno de natureza semelhante. Embora sem concluir, avança pois as possibilidades de serem representação daquilo a que chama um herói “eponymo” ou de serem estátuas evocativas de antepassados. Admite a associação destas duas variantes, de exaltação de um líder, que poderia ser um simples guerreiro, e de culto dos mortos.
Leite de Vasconcelos estudou detidamente estas estátuas ibéricas (70). Considera-as "estátuas proto-históricas, o que se vê, quer do tipo, quer de terem aparecido em castros ou perto deles". De forma significativa, trata o assunto no âmbito do culto dos mortos, e mais especificamente reconduzindo-o aquilo que designa por "divindades, crenças e cultos" (71). Consequentemente, considera que as estátuas são de natureza funerária, sendo erigidas provavelmente sobre túmulos de guerreiros (72), representando pois e evocando os guerreiros sepultados. Suporta esta suposição na comparação deste fenómeno com outros de idêntica natureza e função, observáveis na Nova Guiné e no Alasca (73). Não se aproxima, porém, de uma interpretação próxima da totemização do fenómeno (74).
Aliás, também Santos Júnior, que estudou com profundidade o fenómeno totémico proto-histórico no norte português, não arrisca identificar estas estátuas com cultos daquela natureza. No norte de Portugal apenas poderá falar-se de um culto de tal índole a propósito dos berrões surgidos, designadamente, no nordeste transmontano. Estes sim, protagonizariam um eventual culto zoolátrico totémico (75).
Todos estes autores assumem, porém, sem dúvidas, a natureza sagrada destas estátuas. Por isso, a representação de guerreiros que deles resulta não reveste apenas preocupações figurativas estéticas, revelando antes a manifestação de uma natureza sacra, ou de uma divindade. Mais que isso, parece até haver a pretensão de ser uma representação de concepção simbólica. Desta ideia parte Armando Coelho para concluir que uma tal representação simbólica e mítica da classe dos guerreiros tem "como atributo específico a exaltação da ferocidade" (76).
Não obstante, não pode ver-se nesta divinização de figuras guerreiras uma mera consequência de um qualquer fenómeno de culto dos mortos. As estátuas não podem reconduzir-se a meras lápides funerárias, votivas e evocativas. De facto, contra esta concepção minimalista há que argumentar, além do mais, com a prática funerária castreja ibérica: não era comum fazerem-se enterramentos de corpos em locais a isso especialmente determinados. Julga-se que se praticava a inumação dos cadáveres que, depois, eram guardados em pequenas urnas de cerâmica, eventualmente no seio da sua família, no interior das casas de habitação (77). Esta prática estendia-se a toda a Europa da época a qual, por sinal, viria a ser conhecida por período dos campos de urnas. Só mais tarde se detecta o enterramento em grandes campos de sepulturas, como o de Hallstadt que, por sinal, não tem paralelo na península Ibérica. Quanto às estátuas do Lesenho, não se sabe onde foram rigorosamente implantadas. Porém, não há registo de que alguma das outras estátuas encontradas no noroeste peninsular tenha surgido sobre qualquer sepultura. Pelo contrário, na Citânia de Sanfins existiu uma destas estátuas na entrada, em local onde não é provável que houvesse túmulos. Aliás, esta localização dá-lhe um "carácter evidentemente honorífico" (78). É portanto demasiado redutor considerar estas estátuas, como o faziam os clássicos, um fenómeno designadamente funerário. A sua motivação afigura-se menos concreta e mais ambiciosa, traduzindo "uma forma significante de hierarquia da função guerreira entre os povos castrejos, sugerindo (…) algo simbólico, abstractizante e geral" (79). Este estatuto é, sem dúvida, eminentemente religioso, como tudo o que era importante na cultura céltica, podendo significar "o culto dos chefes, de raiz documentalmente antiga no mundo indígena peninsular (...) e porventura também cumulativamente a glorificação dos antepassados própria de sociedades organizadas com base nos laços de sangue como era a sociedade castreja" (80).
Neste contexto, as estátuas castrejas do Lesenho representariam assim uma divindade guerreira. Junto dela se imolariam animais e prisioneiros, sempre que houvesse um combate ou em qualquer outra ocasião importante na vida do castro.
Ignora-se até que ponto os diversos povos célticos peninsulares trouxeram com eles a tradição teísta manifestada nas diversas culturas célticas europeias. Ignora-se assim se o panteão de divindades célticas da península corresponderia ao da matriz do norte da Europa (81). Se assim acontecia, então as estátuas poderiam ser uma manifestação do culto a Ogme, o deus da guerra (82).

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NOTAS
(1) Embora a qualificação, por leigo, de trabalhos académicos seja tarefa ingrata, estou a referir-me a "A Cultura Castreja do Noroeste de Portugal, dissertação de doutoramento em pré-história e arqueologia do Professor Doutor ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, da Faculdade de letras do Porto, publicada pela Câmara Municipal de Paços de Ferreira e Museu Arqueológico da Citânia de Sabroso, em 1986.
(2) ARMANDO COELHO refere que apenas assim aconteceu na Citânia de Briteiros (Guimarães), no Monte Mozinho (Penafiel) e no Castro de Armea (Santa Mariña das Augas Santas, Allariz, Ourense) - cfr. op. cit..
(3) O Dr. Pereira de Barros era à data juíz na comarca de Montalegre, a qual incluía, além de Covas do Barroso, boa parte do actual concelho de Boticas. Mais tarde, em 1839, Covas seria incluída na comarca de Chaves, sendo em 1852 incorporada de novo na de Montalegre, até em 1878 ser criado o julgado municipal de Boticas. O município de Boticas, por sua vez, fora criado a 6 de Dezembro de 1836. Ou seja, em 1782, data da visita do Dr. Pereira de Barros, Covas do Barroso (e também, aliás, o Lesenho) pertencia não só à comarca judicial mas também ao concelho de Montalegre. Este comezinho pormenor histórico-administrativo tem tido pouca atenção dos responsáveis pelo Museu Nacional de Arqueologia, que têm classificadas e legenda das as estátuas como tendo sido encontradas no "Lesenho, Montalegre".
(4) Este museu, do qual Leite de Vasconcelos foi director, desde a respectiva fundação, em 1893, até 1929, veio a dar origem, nos nossos dias, ao Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, actualmente, como então, instalado na ala ocidental do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.
(5) O "Archeologo Portuguez - Collecção Illustrada de Materiaes e Noticias” modernamente editado com o nome abreviado de "Arqueólogo Português", ê desde 1895 a revista publicada pelo Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, que então se chamava "Museu Ethnologico Portuguez".
(6) Cfr. PIERRE PARIS, "Statues lusitaniennes de Style Primitif", in "Archeologo Portuguez", nº 8, 1903, páginas 1 a 8.
(7) FÉLIX ALVES PEREIRA, "Novo Material Para o Estudo da Estatuária e Arquitectura do Alto Minho", in "Archeologo Portuguez", nº 13, 1908, páginas 202 a 244.
(8) FÉLIX ALVES PEREIRA, "Novas Figuras de Guerreiros lusitanos descobertas pelo Dr. Luiz de Figueiredo da Guerra", in "Archeologo Portuguez", nº 20, 1915, páginas 1 a 16.
(9) Idem, página 15.
(10) LUIS DE FlGUEIREDO DA GUERRA, "Noticia Histórica do Concelho e Villa de Boticas" I, Viana do Castelo, 1911, reimpresso, em "fac-simile", in "Notícias Históricas do Concelho e Vila de Boticas", recolha, organização e notas de José Pacheco Pereira, volume 1, Edição da Câmara Municipal de Boticas, 1982.
(11) Cfr. op. cit., página 31.
(12) De facto, da obra citada nas notas que antecedem, editada pela Câmara Municipal de Boticas, constam pequenos textos publicados no jornal "Ecos de Boticas” entre 1917 e 1920, da autoria de Luís de Figueiredo da Guerra, um dos quais reproduz sinteticamente o texto do seu livro, também citado, indicando que, à data, as estátuas estavam ainda em sua casa.
(13) Cfr. entre outros, AVELINO MIRANDA JÚNIOR, JOAQUIM NORBERTO DOS SANTOS e JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, “Castros do Concelho de Boticas – II Campanhas 1984-1985”, edição da Câmara Municipal de Boticas, 1986, página 63; JOÃO BATISTA MARTINS, “Concelho de Boticas - A sua história”, edição da Câmara Municipal de Boticas, 1992, página 49.
(14) ARMANDO COELHO PEREIRA DA SILVA, op. cit..
(15) Cfr. MANUEL JOSÉ CARVALHO MARTINS, "Por Aquas Flavias – Chaves”, edição da Câmara Municipal de Chaves, 1994, página 106.
(16) Cfr. LUIS DE FIGUEIREDO DA GUERRA, op. cit., página 29.
(17) Cfr. AVELINO MIRANDA JÚNIOR, JOAQUIM NORBERTO DOS SANTOS e JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, op. cit., página 66.
(18) Informação resultante da obra de ARMANDO COELHO, informalmente confirmada pelo Exmo. Director do museu. Sr. Dr. Matos Reis.
(19) Cfr. Decreto do Governo nº 29/90, de 17 de Julho.
(20) Cfr. AVELINO MIRANDA JÚNIOR, JOAQUIM NORBERTO DOS SANTOS e JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, op. cit., página 56.
(21) Idem.
(22) Ctr. LUIS DE FIGUEIREDO DA GUERRA, op. cit., página 30.
(23) Idem, página 50.
(24) Cfr. AVELINO MIRANDA JÚNIOR, JOAQUIM NORBERTO DOS SANTOS e JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, op. cit., página 62.
(25) Estas escavações estão descritas em AVELINO MIRANDA JÚNIOR, JOAQUIM NORBERTO DOS SANTOS e JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, op. cit., página 56 e seguintes.
(26) A freguesia de São Salvador de Viveiro foi criada a 28 de Janeiro de 1967 (Decreto-lei nº 47.516). Até essa data, Campos e o Lesenho pertenciam à freguesia de Covas do Barroso, também do município de Boticas.
(27) Cfr. AVELlNO MIRANDA JÚNIOR, JOAQUIM NORBERTO DOS SANTOS e JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, op. cit., página 67 e seguintes.
(28) Cfr. JOÃO BATISTA MARTINS, op. Cit., página 33.
(29) Cfr. JOÃO BATISTA MARTINS, "De Boticas até á vista de Lesenho", in Noticias de Chaves de 16.V.1995, página 3.
(30) ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, op. cit.,página 292.
(31) Idem.
(32) Cfr. J.LEITE DE VASCONCELOS, “Religiões da Lusitânia", volume III, Lisboa, 1913, página 59 (reimpressão da Impressa Nacional, em "fac-simile", de 1981).
(33) Ver, neste sentido, FÉLIX ANTÓNIO PEREIRA, "Novo Material Para o Estudo da Estatuária e Arqueologia do Alto Minho", in "Archeologo Portuguez", nº 13, 1908, páginas 202 a 244.
(34) J. LEITE DE VASCONCELOS, op. cit., página 48.
(35) Ver sobre esta questão, com pertinência, JOÃO BATISTA MARTINS, "Estátuas de Guerreiros Ditos Lusitanos, Quando São Calaicos ou Galaicos", in Notícias de Chaves de 11 de Outubro de 1996, página 16.
(36) MANUEL JOSÉ CARVALHO MARTINS, op. cit., página 96.
(37) Cfr. ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, op. cit., página 234.
(38) Idem.
(39) Ibidem, página 235.
(40) Cfr. MANUEL JOSÉ CARVALHO MARTINS, op. et loc. cit..
(41) Idem.
(42) ARMANDO COELHO FERRE IRA DA SILVA, op. cit., página 235.
(43) Cfr., neste sentido, “Enciclopédia Universal da Arte”, volume 3º, "As Origens da Europa", Publicit Editora, Lisboa, 1980, página 88.
(44) Cfr. ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, op. cit., página 315.
(45) Ao contrário das muralhas, que existiam em todos os castros, os fossos de pedras fincadas são menos frequentes. Na região envolvente do Lesenho há um fosso de pedras fincadas no Castro de Carvalhelhos, havendo um outro um pouco mais distante, ainda no município de Boticas, no Castro de Cunhas, em Ardãos.
(46) Cfr. JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, "Berrões Proto-históricos do Nordeste de Portugal", Porto, 1975, página 156.
(47) Cfr. MARIO CARDOSO, "Castros", in "Dicionário de História de Portugal", Livraria Figueirinhas, Porto.
(48) Cfr. neste sentido JÚLIO MONTALVÃO MACHADO, "Crónica da Vila Velha de Chaves", edição da Câmara Municipal de Chaves, 1994, página 19.
(49) Cfr. J. LEITE DE VASCONCELOS, op. cit., volume IIº, Lisboa, 1905, página 67.
(50) Cfr. JOEL SERRÃO, "La Téne", in "Dicionário de História de Portugal", livraria Figueirinhas, Porto, 1971.
(51) Cfr. JÚLIO MONTALVÃO MACHADO, op. et loc. cit..
(52) Cfr. “Portugal - Das Origens à Época Romana", edição do Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, coordenação de Francisco Alves, Lisboa, 1989, página 51.
(53) Cfr. MANUEL JOSÉ CARVALHO MARTINS, op. cit., página 102.
(54) Apenas o viria a ser parcialmente, por monges cristãos, na Irlanda, no século VI.
(55) Cfr. ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA. Op.cit., página285.
(56) Cfr. J. LEITE DE VASCONCELOS, op. cit., volume IIº, Lisboa, 1905, onde se refere que ESTRABÃO (III.IV.20) e PLÍNIO ("Naturalis Historia”, IV, 119) coincidem, afirmando que “o Douro separa da Lusitânia os Galegos” e "do Douro para o extremo norte habitavam os Calleci", respectivamente.
(57) Idem, página 63.
(58) Cfr. Segundo AVELINO MIRANDA JÚNIOR, JOAQUIM NORBERTO DOS SANTOS e JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, op. cit., página 91, que defendem que este povo se estenderia "aos castros de Boticas", ai se incluindo o Lesenho.
(59) Cfr. neste sentido J. LEITE DE VASCONCELOS, op.cit., volume IIº, página 75.
(60) Cfr. JÚLIO MONTALVÃO MACHADO, op. cit., página 20.
(61) Ver em ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, op. cit., páginas 275 e 276.
(62) Idem.
(63) Cfr. ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, op. cit., página 276.
(64) Ver sobre este aspecto de pormenor CARLOS CONSIGLIERI e MARÍLIA ABEL, “Os Lusitanos no Contexto Peninsular", Caminho, Lisboa, 1989, páginas 11 e seguintes.
(65) Ver, neste sentido, “Portugal - Das Origens à Época Romana", cit., página 55.
(66) Idem, página 54.
(67) OCTAVIO GIL FARRÉS, conservador do Museu Arqueológico Nacional, de Madrid, atribui esta estatuária ao século I A.C. - Cfr. "Celtas", in "Dicionário de História de Portugal", Livraria Figueirinhas, Porto, 1971.
(68) Cfr. FELIX ALVES PEREIRA, "Novo Material Para o Estudo da Estatuária e Arquitectura do Alto Minho”, in "Archeologo Portuguez”, nº 13, 1908, páginas 202 a 244.
(69) Idem. página 236.
(70) Cfr. J.LEITE DE VASCONCELOS, "Religiões da Lusitânia", volume IIIº, Lisboa, 1913, página 59 e seguintes (reimpressão da Impressa Nacional, em "fac-simile", de 1981).
(71) Cfr. op, cit., capitulo XVIII.
(72) Idem, página 60.
(73) Ibidem, página 61.
(74) Ou seja, não vê nas estátuas representação de uma entidade, "coisa ser vivo, animal ou planta (…) que é considerada como o tronco inicial, remoto, de um grupo de homens, o grupo totémico. O «totem., em primeiro lugar é pois o «antepassado do grupo», em segundo lugar é o seu «espírito protector», que envia oráculos e, mesmo quando é perigoso para os outros, conhece e poupa os seus filhos”. Cfr. sobre esta matéria JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, "Berrões Proto-históricos do Nordeste de Portugal”, Porto, 1975, página 162.
(75) Cfr. JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, "Novos Elementos da Remota Zoolatria em Trás-os-Montes", in "Trabalhos de Arqueologia e Etnologia", volume XXIII, fascículo 1, Porto, 1977, páginas 5 a 28.
(76) Cfr. ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, op. cit., página 288.
(77) Idem, página 293.
(78) Ibidem, página 293.
(79) Idem.
(80) Cfr. ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, op. cit., página 294.
(81) As estátuas do Lesenho não têm inscrições, contrariamente ao que acontece com outras das estátuas encontradas no noroeste peninsular. Ignora-se se tais inscrições são originais, portanto gravadas na mesma época em que as estátuas foram esculpidas, ou se foram mais tarde acrescentadas. No caso especial da estátua de Refojos de Basto, é claro que as várias inscrições são muitíssimo posteriores. Nos restantes, não há tantas certezas. Em todo caso, algumas delas contêm inscrições, em latim ou dialectos celtizantes - o que desde logo suscita dúvidas sobre a altura da sua gravação -, que revelam o seu claro carácter religioso, embora não explicitamente coincidente com as matrizes célticas do norte. Assim acontecia com a estátua de São Julião de CaldeIas, onde pode ler-se uma expressão traduzível por "filho da montanha", a estátua de Rubiás (Celanova, Ourense), onde está escrito algo que significará "guerrilheiro" e a estátua de S. Paio de Meixedo, legendada com os qualificativos de "famoso" ou “ínclito". Ver sobre esta matéria ARMANDO COELHO FERREIRA DA SILVA, op. cit..
(82) Ogme, designação irlandesa, correspondente a Ogmios, designação gaulesa, que os romanos fizeram equivaler a Marte, era o deus da guerra dos celtas. Era o único (só havia um deus da guerra entre os celtas, ao contrário do que acontecia noutras culturas) e ocupava o terceiro lugar, em importância, no panteão dos deuses célticos. Ver sobre esta matéria, FRANÇOISE LE ROUX e CHRISTIAN-J. GUVONVARC'H, "A Sociedade Celta", Publicações Europa América, Lisboa, 1995, página 126 a 132.

26 fevereiro 2006

MONTALEGRE: A TERRA FRIA DA MONTANHA


Divido em Alto e Baixo, o Barroso reparte-se por duas zonas distintas, a que hoje em dia correspondem administrativamente dois concelhos. A sul, o de Boticas, que ocupa a região dos vales fundos e esvacados dos rios Tâmega, Beça, Terva e Covas. É o Baixo Barroso. A Norte, Montalegre, no qual vamos agora incursar, assume-se como Alto Barroso. Aos barrosões, são indiferentes estas divisões e classificações. Todos são de Barroso e, quanto ao resto, fale-se de bois, que é isso que interessa.
Além de Boticas e Montalegre, as terras de Barroso ainda cobrem a freguesia de Soutelinho da Raia, no concelho de Chaves, bem como algumas freguesias dos concelhos de Vieira do Minho e de Cabeceiras de Basto. Esta identidade geográfica barrosã, actualmente apenas histórica, tem porém uma grande tradição autonómica regional: corresponde à antiga terra de Barroso, dotada de foral em 1273, por D. Sancho II, aí se incluindo os concelhos medievais de Montalegre, de Boticas – então centrado em Covas de Barros -, e de Ruivães, extinto em 1853.


Porta de passagem da Galiza para Portugal (e vice-versa), Montalegre acolhe os galegos com o mesmo espírito que estes vêm em Montalegre uma comarca vizinha. Padres, médicos e veterinários prestam os seus serviços de um e outro lado da fronteira. E já assim acontecia em tempos remotos, muito antes da abolição das fronteiras, trazida pelos ventos europeus. Em tempos, houve até jogadores de futebol de Vilar de Perdizes e Soutelinho da Raia que jogavam pela equipa de Videferre, na Copa Regional Galega.
A área do concelho de Montalegre é enorme. Porém, os seus 800 quilómetros quadrados de serras e planalto são escassamente povoados, por menos de vinte mil habitantes, o que lhe dá uma densidade populacional pouco superior a 20 habitantes por quilómetro quadrado. Não se bastando com serem poucos, os barrosões estão também em regresso demográfico. Morrem muitos mais do que nascem, o que cada vez mais se nota na ocupação do território e na paisagem, hoje em dia entristecida pela proliferação de aldeias em desertificação, apenas povoadas por respeitosos gerontes, saídos de um conto de antanho, de Miguel Torga ou Bento da Cruz. A maior parte da população vive no planalto barrosão, que se estende desde os contrafortes do Gerês à depressão do vale de Chaves. O resto do concelho é montanhoso e agreste. Proporciona miradouros esplêndidos, de onde se disfrutam panoramas rasgados. Aliás, todo o território de Montalegre é muito elevado, o que marca indelevelmente o clima. De entre as elevações, merecem destaque a serra do Larouco que, com 1536 metros de altitude é a segunda mais alta de Portugal Continental, a serra do Gerês, com os seus píncaros escarpados e elevados, revestidos de vegetação e povoados de fauna abundante e, ainda, a serra do Barroso, também conhecida localmente por serra das Alturas, por ter o seu ponto mais elevado próximo da povoação de Alturas do Barroso.
O território montalegrense está em parte coberto de florestas. Todavia, são apenas todas de plantação recente, nomeadamente as de coníferas. Apenas nos vales mais abrigados há ainda florestas nativas de carvalhos. Junto aos rios, há choupos e freixos, também plantados, mas para servir de divisórias nos pastos. A maior parte das terras baixas é de semeadura, onde se colhem saborosas e afamadas batatas, ou de pastagens, onde se alimenta e cresce o célebre gado barrosão.
Dos seus antepassados celtas, a população desta terra herdou o carácter orgulhoso e agressivo, do qual resulta um marcado bairrismo, que torna a população solidária e, ao nível da comunidade, autosuficiente. Como em muito poucas zonas do território nacional, a vida e sentimento comunitários são particularmente intensas nas terras de Barroso. Veneram-se de uma forma invulgar os familiares desaparecidos. Por outro lado, todos se sentem umbilicalmente ligados à terra que os viu nascer. Porém, paradoxalmente, o povo barrosão é fechado e reservado, quiçá em consequência da sua actividade tradicional principal, a pastorícia, que o torna igualmente rude e violento.
Mas também o clima, o relevo e a pequena densidade populacional moldaram o carácter rude e austero dos barrosões e determinaram que se agrupassem em aldeias grande e outrora populosas, com muitas casas, próximas umas das outras e aconchegadas. Em regra, não há casas ou quintas isoladas, que seriam muito mais vulneráveis aos temporais, ao frio ou às alcateias de lobos famintos que descem das serras no Inverno. Nestas aldeias grandes, ao longo das gerações, enraizaram-se tradições comunitárias que não poderiam aparecer em pequenas povoações: a vezeira de reses, somente rentável em aldeias grandes; o forno do povo, de grandes dimensões; o boi do povo, que para ser campeão exigia grandes despesas no seu trato. Por todo o Barroso houve, no passado, várias outras ricas tradições de instituições comunitárias, como a administração dos baldios, o ordenamento das águas correntes para rega de lameiros, ou o fojo do lobo.
São também determinadas pelo clima as mais características manifestações do artesanato local: a capucha de burel e a croça. A primeira é uma capa de Inverno, em tecido grosseiro, de agasalho e protecção da chuva e da neve; a segunda é um capote palha ou juncos, destinado ao tempo de chuva.
O povo que aqui habita, laborioso e esforçado, rende-se por isso à alimentação substancial. Na mesa barrosã é imprescindível o fumeiro, composto, entre outros, por chouriças, de carne e de sangue. A par dele, come-se também muita carne de porco. São especialmente característicos desta terra, como de toda a terra transmontana, os rijões, que são pedaços de tripa de porco fritos no unto do próprio animal. Em dias de festa, come-se vitela ou vaca, bem como cabrito. É também nestas ocasiões que se comem os poucos doces que por aqui se permitem: o arroz doce, a aletria e as rabanadas de Natal. A mais recente especialidade regional é a carne de vitela barrosã, na grelha ou na frigideira, sem qualquer tipo de tempero.
Esta é, enfim, uma terra de vastos e vivos horizontes, mas de poucas e fracas vias de penetração. Contrariando a beleza dos lugares e o ambiente pastoril e salutar, onde predomina a natureza selvagem, a vida é difícil por estas paragens. A agrura cria predisposição para a emigração. Apesar do natural apego dos barrosões ao seu torrão natal, desde há séculos que a emigração se instalou como uma tradição e instituição. Quer para as Américas, quer, em momento mais recente, para a Europa. Já assim é desde o século XVI, quando um natural da zona, João Rodrigues Cabrilho, a soldo dos reis de Espanha, se tornou famoso por ser o primeiro europeu a pisar a Califórnia. Também por ser terra de emigração, esta é uma terra hospitaleira, não faltando nunca ao visitante a porta aberta para a mesa farta de cozido à moda de Barroso, presunto, cabrito ou vitela assada.

UMA VILA HERÓICA.
Montalegre, vila e sede do concelho, ocupa o coração do planalto barrosão, em lugar sobranceiro ao rio Cavado e à serra do Larouco, que lhe domina as vistas. Está a cerca de mil metros de altitude, pelo que o seu clima é muito frio e rigoroso no Inverno, sendo em contrapartida ameno no verão.
Os historiadores não sabem ao certo desde quando esta terra é habitada. Julga-se porém que houve barrosões desde o segundo milénio antes de Cristo. Prova disso são os inúmeros dólmenes espalhados por todo o concelho, cuja enumeração inclui várias dezenas. No último milénio antes de Cristo todo o Barroso foi povoado pelo povo celta, que se disseminou pelos outeiros deste território agreste, construindo castros. Estão actualmente inventariados cerca de cinco dezenas. Entre eles, o da vila de Montalegre, sobre cujas ruínas viria a ser mais tarde construído o castelo medieval. Ainda actualmente o povo barrosão exibe as suas características célticas, nas suas feições físicas, no seu carácter violento e orgulhoso e nas suas manifestações lúdicas e culturais.
Embora não haja documentação que o comprove, parece certo que a zona da vila, povoada apenas por pastores até à Idade Média, por essa altura se povoou intensamente, correspondendo este fenómeno à necessidade de povoar e defender o reino portucalense e, em particular, as zonas fronteiriças. Aliás, ao que parece, já então a vila ocupava o lugar de cabeça da terra de Barroso. Com D.Afonso III, Montalegre teve o seu primeiro foral, em 1273, confirmado e renovado por D. Dinis em 1289. Este é o primeiro documento escrito que se conhece sobre Montalegre. E dele pouco se sabe mais porque desapareceu com o incêndio que destruiu a vila durante as escaramuças fronteiriças que opuseram o nosso rei D. Afonso IV a Afonso XI de Castela. Conhece-se uma versão posterior do foral, emitida pelo próprio D. Afonso IV em 1340 e renovado por D. João II, em 1491. Com D. Manuel, em 1515, a vila teve novo foral, o qual acabou com antigos privilégios nobiliárquicos e abriu o caminho para o desenvolvimento que a vila teria nos tempos modernos.
Actualmente, Montalegre é uma vila agitada por ser o centro administrativo e comercial do Alto Barroso. Tem foros de minimetrópole. A sua rua principal, a Rua Direita, muito comercial, destina-se apenas ao trânsito de peões. Nesta rua predominam ainda as casas de granito cinzento, típicas de Barroso, que aliás são muito abundantes por toda a vila. Verifica-se com agrado que vários dos edifícios públicos de construção mais moderna, na zona da Portela, exibem o uniforme cinzento acastanhado que lhes impõem o estilo e os materiais de construção tradicionais. Há também – como não ? -, por toda a vila, maisons de cores garridas, normalmente propriedade de emigrados e por isso abandonadas durante a maior parte do ano.
Mas é também uma vila florida, com vários e bem cuidados canteiros e jardins. Sobretudo nas praças principais, onde uma estátua de João Cabrilho domina com o olhar os edifícios solenes do Palácio de Justiça, da Câmara Municipal e da Caixa Geral de Depósitos. Com a mesma passividade, quiçá lamentada, o navegador das Américas contempla as esplanadas fronteiras onde, nas noites frescas de verão, entre flores, se podem beber uns copos enquanto se discute o desenlace da última chega de bois.

O CASTELO, GUARDA FRONTEIRIÇO
A torre principal do castelo de Montalegre domina a paisagem de toda a vila e de boa parte do planalto barrosão. Vê-se de todos os lados e de lá avista-se toda a povoação, bem assim como boa parte do planalto barrosão. Bem estiveram os seus fundadores ao construi-lo aqui, porque em altivez e orgulho apenas tem como rival a serra do Larouco, que lhe fica fronteira. É o monumento mais marcante e notável de Montalegre. Historicamente é o mais significativo. Constitui ponto obrigatório de paragem, mesmo para o visitante mais distraído.
A sua edificação deve ter-se iniciado no tempo de D. Sancho I, cujas armas apareciam num pelourinho da vila, já desaparecido, apesar de figurar ainda em muitos roteiros turísticos como curiosidade a visitar… Deste pelourinho, apenas ficou o nome, que ainda hoje designa um dos largos próximos do castelo, onde terá estado edificado, até finais do século XIX, altura em que foi transferido para o Largo do Toural, de onde desapareceu sem deixar rasto.
Todavia, tudo indica que o castelo tenha sido edificado em cima dos escombros de uma construção, bastante mas antiga. Assim o dizem as lápides e moedas, do período romano aí encontradas. Já assim o referia Duarte de Armas, o servidor da Coroa que no século XVI visitou e inventariou todos os castelos fronteiriços portugueses.
Entretanto, já no tempo do rei D. Afonso III, curiosamente, o castelo, sede do poderio militar, albergava um exército comandado por um alcaide que, sendo caso raro em Portugal, era de eleição popular. Montalegre, herdeira de uma larga tradição comunitária celta era agora uma beetria, circunscrição autónoma, cujo alcaide, popular, não era nomeado pelo rei, que apenas sancionava a sua eleição pelo povo.
Apesar da origem muito antiga do castelo, a actual configuração da fortaleza é tipicamente dionisíaca, sendo provavelmente o resultado das obras de reforço das fortificações fronteiriças, levadas a cabo no tempo de D. Dinis. Na sequência destas reformas, o castelo viveu então a sua época de apogeu, que coincidiu com o fim da Idade Média. Posteriormente, apenas lhe foram feitas algumas dispersas obras de restauro – e entre elas, já as de meados do século XX -, as quais tiveram somente em vista a conservação arquitectónica do monumento. Não obstante, há notícia de que no século XVIII ainda havia guarnição e alcaide no castelo.
Resistindo ao tempo e gratificando o seu visitante com a sua elegância, o castelo ainda actualmente conserva a alcáçova de forma ovalada, cercada por uma muralha granítica, alta e espessa. Numa das faces desta alcáçova há uma porta; do lado oposto, da muralha apenas restam fundações. Espalhadas e implantadas por vários pontos das muralhas, estão as várias torres do castelo. São quatro, das quais a maior é a torre de menagem. É também a mais alta, com quase trinta metros de altura. A sua planta quadrangular tem cerca de treze metros. Esta torre é visitável em todos os seus quatro pisos interiores, alguns dos quais são encimados por abóbadas polinervadas. Merecem especial referência os balcões e os varandins do penúltimo piso, de inspiração gótica, que decoram as faces da torre, no seu topo. São todos acessíveis do interior. As restantes torres são de dimensões mais modestas. Como brinde final ao turista, este castelo mostra ainda, no centro da alcáçova, uma notável cisterna, emparedada, a qual tem escadas até ao fundo, a 25 metros abaixo do solo.

ARQUITECTURA NOBRE E TRADICIONAL
As casas de Barroso são em geral uniformemente simples e cinzentas. A sua beleza rústica prevalecia até há algumas dezenas de anos, quando começaram a regressar mais intensamente os emigrados de além-fronteiras, que trouxeram com eles descontracção e vontade de a demonstrar, nomeadamente no estilo inusitado que imprimiram às suas casas. Mas há, além destas, alguma que outra excepção ao estilo tradicional e, se assim se lhe pode chamar, regional.
Na vila, em dos mais notáveis casos atípicos e a Casa do Cerrado. Quando o castelo deixou de servir como residência senhorial dominial, no advento da Idade Moderna, os alcaides de Montalegre mudaram-se para um novo paço, construído em sítio mais abrigado das intempéries que o morro do castelo medieval. Esta nova residência, que ficou conhecida como Casa do Cerrado, está em sítio actualmente próximo do centro cívico da vila, em frente ao Tribunal Judicial, à Câmara Municipal e ao edifício da Caixa Geral de Depósitos. É um solar granítico, rodeado, em tempo, de jardins, com traços tradicionais e pretensões senhoriais. Hoje em dia passa um pouco desapercebido, por estar baixo e pela proximidade de outros edifícios maiores e mais altos. Mais chamativa é a sua monumental portalada de acesso ao pátio, também em granito, onde estão esculpidas, em grandes dimensões, as armas dos senhores da casa.
Quanto a igrejas, em Montalegre há algo, que não muito, a dizer. Somente há algumas dezenas de anos Montalegre foi dotada de uma grande igreja matriz, compatível em grandeza com a terra. A actual igreja principal é um templo grande e moderno, dominado por uma torre sineira, construído em cimento e pintado de branco. Está a leste do núcleo principal da vila, próximo da saída para Boticas. Muito mais antigas, são as duas igrejas da zona medieval da vila. Uma delas, a igreja do castelo, que já foi matriz, está efectivamente muito próxima do castelo. Rodeiam-na muitas e frondosas árvores, que lhe dão um ambiente sereno e pacato de muito recolhimento. Embora seja de origem medieval, a traça actual deve remontar ao século XVII. Nela merece destaque a torre sineira. Tal como em muitas igrejas da região, está separada do corpo principal do templo, ao qual fica fronteira, tendo acesso próprio, pelo exterior. A outra igreja é mais baixa e atarracada. Também tem origem medieval, embora as suas características arquitectónicas actuais revelem alterações muito posteriores. Fica no Largo do Pelourinho.

EM SÃO VICENTE, UM CASTRO E UMA IGREJA
Nas proximidades de São Vicente da Chã, a pouco mais de cinco quilómetros de Montalegre, em zona que agora está parcialmente submersa pela Barragem do Alto Rabagão (Pisões), numa colina – que com a barragem se tornou numa ilha -, estão os vestígios de um antigo castro celta. Os trabalhos de escavação levados a cabo na década de 1960 revelaram a existência de três cinturas de muralhas, estando ainda visíveis duas delas, separadas entre si por uma faixa de terreno de 15 a 20 metros. Nelas chegou a descobrir-se uma porta. Escavaram-se ainda vestígios de casas, quer circulares, quer rectangulares. Descobriu-se alguma cerâmica, toda de origem castreja. Como em relação a outros da região, o que restava deste castro foi sendo destruído pela população, que ali encontrou uma fonte barata de pedra granítica, para construir as suas aldeias. Boa parte dos vestígios desta erosão foi transformada em Philae do Rabagão, na década de 1960, quando foi construída a barragem, de grande porte, no leito do rio. Por isso, actualmente as ruínas só são visitáveis de barco.
Mas, em São Vicente, há também uma grande igreja, cuja construção, de raiz românica, tem origens no século XIII. Embora esteja actualmente muito alterada, conserva ainda claros traços românicos. Nos beirais pode ainda ver-se com nitidez a graciosa cachorrada românica. Na fachada principal há um óculo, encimando o pórtico românico, muito gracioso, com duas arquivoltas lisas. Ao seu lado está curiosamente no exterior do templo, uma pia baptismal, igualmente românica. Em frente à igreja, separada por escassos metros, está a torre sineira, bastante alta e esguia, de construção muito posterior. O seu campanário, que alberga dois sinos, tem acesso pelo flanco exterior desta torre. O interior da torre, que é a matriz de São Vicente, é de uma só nave. Alberga duas peças de valor: um Cristo cruxificado e uma pietá, ambos do século XVIII. Há notícia de que esta igreja e os respectivos bens foram comenda dos Templários, entre os finais do século XIII e os inícios do século XIV.

UMA PONTE COM TRADIÇÃO
Também conhecida por Ponte do Diabo, a Ponte Misarela é um dos lugares mais míticos do Barroso. Fica no limite de Trás-os-Montes com o Minho e transpõe o rio Rabagão, já próximo da sua foz com o Cavado. Por ela passaram os franceses do exército invasor de Soult, quando retiravam em fuga, a 16 de Maio de 1809. Não sem que os tentassem impedir alguns paisanos portugueses, capitaneados por um sacerdote, que compreenderam a importância estratégica da passagem da ponte e quiseram encurralar os inimigos entre ela e o exército nacional que os perseguia.
Diz-se que a sua origem é romana. De acordo com a lenda, esta ponte foi construída pelo diabo, pois só ele, com as suas artes maléficas, poderia colocar uma ponte sobre o rio, num desfiladeiro como este.
À ponte estão associados poderes sobrenaturais: a ela se deslocavam as mulheres estéreis que, com os respectivos maridos deviam aqui dormir uma noite. Depois, para que a criança nascesse sem complicações e com saúde, já durante a gravidez, deveriam o pai e a mãe voltar à ponte onde dormiriam de novo. Mas desta vez, só até à meia-noite. Depois desta hora, os futuros pais aguardavam a primeira pessoa a passar sobre a ponte, que logo ficaria, por este facto, designada para padrinho. Desde logo se baptizava o nascituro, ainda no ventre da mãe, dando-se-lhe o nome escolhido pelo viajante.
Actualmente, o lugar está muito modificado, pela proximidade da barragem e da albufeira de Salamonde, no sistema hidroeléctrico do Cávado.

DO GERÊS À CALIFÓRNIA
Anualmente, no Outono, as comunidades portuguesas e espanholas de San Diego, nos Estados Unidos da América, fazem uma festa, bem ao estilo do novo mundo, com desfiles de majoretes e bandas de música fardadas de cores garridas. O motivo desta comemoração latina é a evocação de João Rodrigues Cabrilho, o descobridor da Califórnia. Supõe-se que este navegador quinhentista nasceu em Lapela, na freguesia de Cabril, em território actualmente integrado na área do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Porém, pouco mais se sabe dele, até ao momento em que chegou a Espanha, onde se colocou ao serviço da respectiva coroa, que o enviou para a América. Já do outro lado do mar, viveu em Cuba e na Guatemala. A partir destas colónias castelhanas, e ao serviço dos reis espanhóis, levou a cabo a grande obra da sua vida: como capitão-de-fragata, chefiando uma armada, fez o reconhecimento minucioso e sistemático da costa oeste da América do Norte, até à Califórnia, sendo o primeiro europeu a pisar o seu solo, em 1542, 50 anos depois de Colombo ter chegado ao novo continente.
Em Lapela, numa casa modesta, anónima e incaracterística, uma placa diz que ali nasceu João Cabrilho. Esta informação vem da tradição local, embora não haja grandes fontes documentais onde se possa confirmar. Para chegar à aldeia, que fica a oeste de Montalegre, sede do concelho, é necessário internar-se no Parque Nacional do Gerês, por uma estrada florestal de terra batida, durante cerca de uma dezena de quilómetros, a partir de Paradela do Rio, na zona mais oriental do Parque.

UM MOSTEIRO ENTRE SILVADOS
As ruínas do Mosteiro de Santa Maria das Júnias são um local ermo e místico, localizado a sul da aldeia de Pitões das Júnias, no noroeste do concelho de Montalegre. Estão no fundo de um vale escavado no planalto da Mourela, emergindo dos densos silvados que o revestem. O conjunto é simples e bonito, apesar de muito degradado. É o que resta de um antigo mosteiro, fundado na Idade Média, a partir de um eremitério, construído numa zona de morfologia agreste e clima destemperado. A partir do século passado, foi sendo abandonado, ruindo pouco a pouco, sobretudo após um violento incêndio que quase o destruiu totalmente.
Foi fundado, provavelmente, no século IX da nossa era. Diz a lenda (citada por JOÃO GONÇALVES DA COSTA, em "Montalegre e terras de Barroso", I, paginas 120 a 121) que a sua fundação foi voto de um grupo de fidalgos que andavam por aqui a caçar e, a certa altura, no tronco de uma árvore, viram uma imagem de Nossa Senhora com o Menino, sinal que tomaram como indicação para a construção de uma igreja. Há quem explique este facto, dando-lhe fundamento histórico, dizendo que a imagem religiosa teria sido escondida aquando das invasões muçulmanas, para a proteger dos infiéis. Com mais fundamento, pode afirmar-se que, no século XII, sob a protecção dos monges beneditinos galegos, do Mosteiro de Santa Maria de Osera, este local foi transformado num mosteiro, ligado inicialmente à diocese de Ourense, que integrava Osera, para passar mais tarde a pertencer ao mosteiro cisterciense de Santa Maria do Bouro, integrado na diocese de Braga. Ao longo da sua história, aliás, viria a estar ligado, quer a um lado, quer a outro. Teve, por variadas vezes, abades galegos. O seu último pároco, que não merecia o título de abade, por ser já o único habitante do mosteiro, morreu em 1850.
Nas ruínas do notável conjunto, vale a pena realçar a porta principal da igreja, tipicamente românica, com um arco de volta inteira de duas arquivoltas e um tímpano singelamente decorado. O claustro do mosteiro, do qual restam apenas alguns arcos de volta inteira, também é notável, apesar de estar muito destruído. Tal como o resto do edifício, estes arcos são de granito,
Não obstante estar muito arruinado e em completo abandono, o mosteiro merece uma visita. Fica a cerca de um quilómetro e meia de Pitões das Júnias, para sul, por um caminho de terra batida, sinalizado pelos serviços do Parque Nacional da Peneda Gerês, em cuja área se encontra. Este caminho apenas é circulável por veículos de todo-a-terreno e, em parte, a pé.

O SOLAR DE VILAR
Em Vilar de Perdizes, paróquia do Padre Fontes, existe um solar, pertencente aos morgados - a família Pereira de Vilar -, em tudo comparável aos solares residenciais das ricas famílias de lavradores, descritos por Júlio Dinis. A historia da casa é obscura. Diz-se que houve aqui uma albergaria medieval, para peregrinos, porque passava por cá uma das vias menores do Caminho de Santiago. No que ainda hoje resta da capela há vestígios possíveis dessa albergaria. Aliás, sabe-se que o abade da freguesia de São Miguel de Vilar de Perdizes, no século XVI, criou um hospital, anexo ao paço e capela da família dos morgados, para o que contou com o rendimento da paróquia. Este hospital, que teria inclusivamente uma botica, albergava gratuitamente os peregrinos que aqui passassem, nomeadamente aqueles que se dirigiam para Santiago de Compostela.
Actualmente, o solar apresenta o aspecto de uma residência senhorial do século XIX. A fachada, sóbria, em granito, tem dois pisos. Apenas é decorada pela escadaria, também granítica, que lhe fica no centro. Em volta do edifício há um terreiro amplo, ao lado do qual são ainda visíveis os vestígios da albergaria medieval, deles se destacando os restos ias edifícios religiosos de então. No seu interior, em razoável estado de conservação, já estiveram instalados serviços públicos.

OS FORNOS DO POVO
De todas as instituições de vida comunitária, uma das mais importantes, pelo seu significado prático e sociológico, era a construção e manutenção em funcionamento de um forno do povo. Do ponto de vista da vida quotidiana, esta tradição era muito importante no passado, quando as aldeias estavam isoladas. Vivia-se em economia de subsistência e, por isso, havia que ser auto-suficiente no aspecto alimentar. As padarias, mesmo na vila, são um fenómeno moderno, e um bom naco de pão não se dispensa à mesa. Tanto mais, que no Barroso abundam os cereais, em especial o centeio, tradicional dos climas frios, que cozido dá um pão muito escuro e saboroso, que se conserva fresco e inalterado durante muitos dias. O forno comunitário servia então para que cada uma das famílias fabricasse regularmente pão, consoante fosse sendo necessário. Até há poucos anos, ser padeiro não era profissão, pelo que cada um tinha que amassar e cozer o pão que consumia. Assim, o forno era uma obra social e colectiva importante, uma vez que a construção de um forno próprio era incomportável para a maioria das famílias que, deste modo se socorriam, por turnos, do forno colectivo.
Além disso, num passado desaparecido, e por isso, por vezes chorado, o forno do povo era um ponto de encontro de toda a aldeia. Aí se albergavam, ao calor da fornalha, os mendigos, os artistas ambulantes e os viandantes, nas noites invernosas. Era um "lugar de oração e de reunião, como qualquer capela em serviço permanente" (ANTÓNIO LOURENÇO FONTES, em "Etnografia Transmontana", l, página 10). Era também um local para o serão da rapaziada da aldeia, nas longas e frias noites de inverno, num mundo que já não existe, onde não havia televisão, nem cafés, nem outras modernidades.
Melhor ou pior, todas as aldeias tinham o seu forno, havendo até algumas que tinham mais que um. Era o caso de Vilar de Perdizes, que tinha um forno para cada um dos seus bairros. Ainda hoje, merecem destaque, por estarem em bom estado de funcionamento, além dos de Vilar de Perdizes, os fornos de Padornelos, Tourém e Pitões das Júnias. Estão ainda referenciados outros, em Meixedo, Gralhas, Solveira, Negrões e Travassos da Chã. Nenhum deles tem tido utilização, por serem grandes e consumirem muita lenha até aquecerem e ficarem prontos a usar, o que implica grandes custos, que actualmente não são vantajosos, se comparados com o preço do pão trazido das padarias da vila.
Todos os fornos têm de comum serem edifícios baixos, de um só piso, integralmente construídos em granito, para evitar incêndios. São de pedra as paredes, como também o são os arcos e a abóbada que suportam o telhado. O mesmo se passa com o próprio telhado, formado por lajes graníticas, finamente cortadas. Do lado de fora, ao longo das paredes, existem, em regra, sólidos contrafortes, também graníticos, onde se apoiam os arcos da abóbada interior. Tudo visto, apenas é feita de madeira a única porta que costumam ter. No interior, o espaço é amplo, havendo num dos lados uma bancada de trabalho, de pedra. No outro, fica o forno, propriamente, com a sua cúpula de materiais argilosos e refractários.
Para o viajante que anda em busca das ancestrais tradições e formas de vida comunitária do povo barrosão, de um mundo que já expirou, é obrigatória a visita aos fornos de Padornelos, Tourém ou Pitões das Júnias.

A CHEGA DE BOIS
As chegas de bois são o desporto barrosão por excelência, constituindo um dos fenómenos mais genuínos desta terra que, a custo, ainda subsistem. Consistem no combate, a chifres descobertos, de dois possantes bois, pertencentes a duas aldeias diferentes, representando cada um deles o povo ao qual pertence. A população, acompanha-o no combate, dando-lhe apoio. A chega é assim símbolo e modo de expressão da vida comunitária do barrosão, cuja honra e valor, tal como a de todos os seus conterrâneos, é medida pela bravura do boi da sua aldeia. Nos nossos dias, este espírito está a desaparecer, fruto da aparição de bois pertencentes a particulares, negociantes de gado, que fazem da organização de chegas a sua actividade profissional.
A figura central desta competição é o BOI DO POVO, que tradicionalmente era escolhido de entre os melhores exemplares da raça barrosã. Actualmente, os poucos bois que existem pertencem também a outras raças, muito difundidas entre os criadores de gado da região por produzirem mais carne, apesar de não ser de tão boa qualidade. Porém, os bois barrosões, cuja raça tem como características a cabeça curta, a fronte longa e os chifres curvos e ponteagudos, pegam melhor, apesar de serem mais pequenos que os das modernas raças concorrentes. O boi do povo tem pastos próprios e corte própria. Nos seus pastos são colhidas forragens que o alimentam durante todo o ano. A sua corte tem dois pisos: no inferior fica o boi; no superior armazena-se a forragem. A corte de Padornelos, por exemplo, é particularmente interessante. Tem até uma sineta no topo que, quando havia boi do povo se destinava a fazer juntar a população da aldeia, nos momentos que antecediam a partida para a chega. Sendo do boi, tudo é propriedade do povo e portanto de todos. Todos contribuem, quando necessário, para o sustento do boi e para o pagamento do seu tratador privativo.
A chega, de acordo com as regras tradicionais, deveria realizar­-se numa clareira ou num descampado, a igual distância das duas aldeia contendoras, A sua preparação comporta truques, como por exemplo fechar o boi durante vários dias, para o deixar bravo, ou afiar-lhe os chifres com navalhas ou, ainda, fazer consultas a bruxas e promessas de sacrifícios a santos. O combate entre os dois touros pode demorar um minuto ou uma hora, dependendo isso da coragem, da força e da tenacidade dos bichos, No fim, os partidários do vencedor (o que podeu) festejam com alegria; os outros, cabisbaixos e desanimados, retiram para casa em silêncio.
Actualmente, é ainda possível ver chegas de bois, sobretudo em alturas festivas. Porém, já são raros os genuínos bois do povo. Em atenção à decadência desta tradição comunitária, o Parque Nacional do Gerês tem fomentado e apoiado a renovação dos bois, chegando mesmo a dotar algumas aldeias com um boi. São em número bastante mais significativo os “gladiadores bovinos”, a combater por conta de negociantes de gado e outros profissionais do ramo, que fazem das chegas modo de vida. São bois mercenários, que, apesar da imagem negativa que por isso projectam, vão mantendo viva a tradição apesar de a generalidade das chegas se realizar agora em estádios e campos de futebol, com entradas pagas, como se de um mero espectáculo lúdico ou se tratasse.

O DEUS LAROUCO
Do planalto barrosão, a nordeste da vila de Montalegre, sobressai o espigão de uma serra que no outono é escura e ameaçadora, no inverno é branca, na primavera verde e no verão garrida. É a serra do Larouco, cuja altitude máxima atinge os 1536 metros acima do nível do mar. Está disposta na direcção norte/sul, atravessando a fronteira e prolongando-se para terras da Galiza, com um comprimento de cerca de 10 quilómetros. Chega-se lá, partindo de Montalegre pela estrada de Vilar de Perdizes, que depois se deixa na direcção de Padornelos. Daqui, toma-se a estrada de Sendim e do antigo posto fronteiriço, cuja estrada se deixa para a direita, na direcção da pendente ocidental da serra. Até aqui a estrada é pavimentada e pouco pronunciada; passa agora a ser térrea e íngreme. Nalguns troços está mesmo em muito mau estado. Todavia, o panorama imenso que daqui se avista, consoante se vai subindo, compensa o esforço da subida.
A zona do topo, próxima da raia, é conhecida por Fonte da Pipa. Trata-se de um planalto, a cerca de 1500 metros de altitude, que no inverno e na primavera está sempre bastante molhado, por reter as águas pluviais. Um pouco mais abaixo, na encosta poente da serra, com esta água começa a formar-se o rio Cávado. A 1525 metros de aItitude, num plateau rochoso, está um marco geodésico, de onde o panorama é fabuloso. Avista-se todo o Barroso, o Alto Tâmega e o Gerês, como se fossem vistos de avião.
A historiografia galaica diz que no cimo do Larouco havia, há dois mil anos, um templo a Júpiter. Arqueólogos da região raiana, de ambos os lados da fronteira, apoiados por populares, têm feito nos últimos anos, no verão, réplicas das festas pagãs que havia outrora. À serra chamavam os romanos Monte Ladiço. Nas suas encostas foi colocada na Idade Média uma atalaia, que mais tarde se transformou em castelo, dividindo inicialmente as dioceses de Braga e Lugo e, depois, Portugal da Galiza.

NO BARROSO, UM PEDAÇO DO PARQUE NACIONAL
O Parque Nacional da Peneda-Gerês inclui no seu território uma significativa parcela do concelho de Montalegre, a noroeste da circunscrição. É uma área grande, no conjunto do Parque, que se demarca pela especificidade da morfologia do terreno e pela particularidade dos ecossistemas. É uma das zonas mais interessantes, apesar de ser das menos visitadas. Caracteriza-se pelo predomínio das zonas planálticas, inóspitas e rochosas, cortadas aqui e ali por córregos largos e fundos. Há aldeias, grandes e populosas, como no restante Barroso, uniformemente cinzentas, o que resulta do granito em que sem excepção são construídas. A economia da população local baseia-se sobretudo na pastorícia. Há muitos e grandes pastos de altitude, tal como há lameiros, de dimensões mais reduzidas, normalmente rodeados de árvores, que os protegem dos ventos. Estes lameiros servem como pastos no verão, mantendo-se verdes toda a estação, porque são regados pelos sistemas tradicionais de levadas, alimentadas pelos rios e ribeiros. Aliás, uma das instituições comunitárias mais tradicionais da região é a regulamentação da rega de lameiros, que são alternadamente regados por cada um dos vizinhos, de modo a que ninguém fique sem água. No inverno, com o solo coberto de neve ou gelo, o gado apenas se alimenta de forragens ou palha. Nas margens dos cursos de água há, de onde em onde, azenhas, destinadas em tempos idos a aproveitar a energia hídrica para moer os cereais. Actualmente, a generalidade destes moinhos de água está destruída ou muito arruinada.
Dentro da área do parque, as aldeias maiores e mais castiças são TOURÉM e PITÕES DAS JÚNIAS. Em relação a elas, a Câmara Municipal de Montalegre tem tido particulares cuidados, em conjugação com a Direcção do Parque Nacional, para salvaguardar as respectivas fisionomias e as suas características arquitectónicas e paisagísticas.
PITÕES DAS JÚNIAS é uma aldeia muito grande, com muitas casas, invariavelmente graníticas. Algumas ainda têm telhado de colmo. Sobretudo de entre aquelas destinadas à recolha de animais. As ruas da aldeia são estreitas e estão sempre enlameadas, mesmo no verão, apesar de quase todas elas estarem calcetadas. Na zona central da aldeia, próximo de uma das fontes, está localizado o forno comunitário.
TOURÉM, também de grandes dimensões, é porém mais pequena. Constitui uma curiosa espécie de enclave, que na raia norte entra pela Galiza, mantendo-se portuguesa apesar de estar virada para Espanha. Aliás, nesta terra há, por isso, uma grande identificação com a Galiza: por exemplo, quando há que chamar o veterinário, ou o médico, chama-se o espanhol, de Randim. Esta é, aliás, uma realidade com raízes históricas. Conta-se que na Idade Média houve uma espécie de referendum em Tourém, para decidir se a freguesia alinhava por Portugal ou pela Galiza. Prevaleceu, desde então a tendência lusitana. Porém, nas vizinhanças, foi o único povoado a optar por Portugal, ficando assim geograficamente isolado. Ainda actualmente o acesso é feito por uma única estrada asfaltada, que atravessa o planalto da Mourela, cuja paisagem desolada de rochas graníticas e vegetação rasteira está a 1200 metros de altitude. Este acidente geográfico, que no inverno se cobre de neve, tornando-se intransponível, é a fronteira natural entre Portugal e Espanha.

AS BARRAGENS QUE MUDARAM A PAISAGEM
Barroso, terra de montanha, é também terra de muita água. Das serras correm rios e córregos, caudalosos no inverno e na primavera e mais calmos no verão. Os seus vales prestam-se à construção de barragens e de centrais de aproveitamento da energia hídrica. O rio Cávado e o seu afluente Rabagão dão origem, ao longo dos respectivos cursos, a um dos maiores e mais complexos sistemas de barragens e centrais hidroeléctricas. Os lagos artificiais, para além de intervirem na ecologia e na paisagem da região, modificando-a, criam também interessantes locais de turismo e lazer.
A albufeira da BARRAGEM DO ALTO RABAGÃO, junto da aldeia de Pisões, é o maior lago de Portugal. Tem cerca de 12 quilómetros de comprimento máximo e cerca de 4 de largura, tendo uma capacidade de mais de 500 milhões de metros cúbicos de água. O dique da barragem propriamente dita tem cerca de 3 quilómetros de comprimento e noventa metros de altura máxima. A sua construção foi concluída em 1966, ficando desta obra, como especial referência, a sua central, que é subterrânea e fica a 130 metros de profundidade.
Como lago, apropriado para actividades de lazer, esta barragem é de utilização livre e sem restrições. As suas margens são muito recortadas, com baías, golfos e pequenas enseadas, de areia e pedra granítica. Tem muita pesca e podem praticar-se desportos náuticos, para os quais há boas condições. Em boa parte as margens são vegetadas com carvalhos e, sobretudo, com mato rasteiro, criando assim uma bonita paisagem, completada pelas cadeias montanhosas das vizinhanças
A BARRAGEM DO ALTO CÁVADO é a mais pequena e modesta da região. Com apenas um par de quilómetros de comprimento, tem capacidade para tão só 2 milhões de metros cúbicos de água. A barragem, em betão, tem uma altura máxima de 29 metros. Não tem central hidroeléctrica, mas as suas águas não se perdem: alimentam a Barragem do Alto Rabagão, para onde são levadas por uma conduta artificial com quase cinco quilómetros de comprimento. A configuração deste lago artificial é comprida mas estreita, seguindo o curso sinuoso do rio Cávado. As suas margens estão revestidas de densos matagais de vegetação nativa, onde avultam os carvalhos. Há também alguns prados, que dão encanto e placidez ao lugar. A utilização desta barragem é condicionada por lei, podendo ser feitas restrições às actividades aqui desenvolvidas. Não obstante, é autorizada a pesca e a natação, bem como alguns desportos náuticos.
Também no rio Cávado, está a BARRAGEM DE PARADELA. O seu dique é uma impressionante edificação de terra e granito, empilhados em aterro, com uma altura de 110 metros e um comprimento de 540. Pelas suas dimensões, já foi considerada a maior da Europa no género. O lago é igualmente de grande e profundo, com capacidade para mais de 150 milhões de metros cúbicos de água. Também aqui não há central de aproveitamento hidroeléctrico. Porém sem se perder, a água que daqui sai é directamente canalizada para a Central de Vila Nova, sobranceira à Barragem de Salamonde, por uma fantástica conduta escavada na montanha, com cerca de 11 quilómetros de comprimento. Quer a barragem, quer a respectiva albufeira, estão na área do Parque Nacional da Peneda-Gerês, em zona de planalto, em geral despido de arborização. Apenas em alguns locais há coníferas, plantadas pelos serviços florestais. Com estas condicionantes, a barragem é classificada como protegida, por motivos de preservação ambiental e ecológica, sendo todavia permitido, com certas restrições, pescar e nadar, bem como praticar desportos náuticos, desde que sem utilização de motor. Os acessos à barragem são, em regra, maus. Fazem-se por caminhos de terra, embora curtos, que partem do estradão florestal que a bordeja pelo sul. Há, todavia, locais muito agradáveis e propícios às actividades de ar livre.
A mais distante barragem do concelho de Montalegre, já nos limites do Minho, é a BARRAGEM DA VENDA NOVA, no rio Rabagão. É a mais antiga de toda a região (foi construída em 1951). O seu dique tem 96 metros de altura máxima e 230 de largura. A sua albufeira, com capacidade para quase cem milhões de metros cúbicos de água, tem cerca de 10 quilómetros de comprimento, apesar de ser muito estreita. Como outras, não tem central hidroeléctrica, alimentando com as suas águas a Central de Vila Nova, para onde são levadas por uma arrojada conduta com cerca de 3 quilómetros de comprimento. A albufeira é muito irregular, com variadas ramificações para os flancos, entrando pelos vales dos afluentes do Rio Rabagão. As margens são intensamente florestadas com coníferas, dando à paisagem uma tonalidade sempre verde e repousante, que convida à prática da vida ao ar livre. Tanto mais que esta barragem é de utilização livre, sendo possível pescar e nadar, bem como praticar todas as modalidades de desportos e competições náuticas.